terça-feira, abril 15, 2008

Devorações

Lehgau-Z Qarvalho

Alícia era uma ninfa antes de ser um redemoinho na cabeça de Verter, e não aspirava a mais nada senão sair para a luz do dia. Suas raízes não mais existiam e ela percebia pouco do que se passava ao redor. Quisera assim transformar-se, de certa feita, tornando-se vítima de seus próprios intentos.

Verter observava a rua, de sua janela. À noite os faróis dos carros viravam prateados homenzinhos serviçais. Eles contribuíam na construção de uma casa onde as pessoas se perdessem. Não era para ser um lugar atroz, mas um lugar onde coisas atrozes acontecem. De seu comércio com a noite e as auroras, descobriu que ninguém sabe o que veio fazer neste mundo. Portanto, estaríamos todos, aqui, a passeio. Ou não. O que pouco importa, então.

Relevante é que cada um cria seus precursores, em sua concepção do passado; assim como há de modificar o futuro. De nós não sairão criaturas mais lúcidas ou mais nobres que nossos melhores momentos, informava aos transeuntes, externos e internos. O conselho para sempre virarem à esquerda o fazia recordar que era esse o procedimento comum para descobrir o pátio central da invenção de Dédalo. Sentia que algo estava por acontecer-lhe, ou estava acontecendo, ou já teria acontecido; e logo com ele, pensava. Sentia. Sofria. Mas refletia que todas as coisas acontecem sempre a um preciso alguém, em um preciso momento. E esse pensamento era, em si, bastante para fazê-lo acabar com as próprias agruras, por vezes, por ele, em muito aumentadas.

Mas há quem diga que os caminhos que aprisionaram Ícaro e seu pai provocam a profusão e a confusão dos sentimentos, exercendo uma espécie de posse sobre o homem ou a mulher que não consegue desvendá-los em sua integralidade. Há quem diga, também, que quando feitos de jardins, e sobre os jardins, trazem menos melancolia às paixões não correspondidas. E há quem diga que tudo não passa de pura ficção.

Melhor seria, talvez, a abordagem de Rabelais, para quem divertimento e aprendizagem não são incompatíveis. Mas, neste caso, temos que esquecimentos podem ser fatais, mesmo quando parte do estratagema. Ingressaram lá porque quiseram. A ninguém podiam culpar. A corda enrodilhada na entrada. Aumento do movimento nas ruas. A construção a agigantar-se. Asterion a salivar.

Verter na janela. A madrugada em secreção.


Séculos antes de séculos; séculos e mais séculos além: e só no presente ocorrem os fatos. Alícia deixou-nos também.

5 comentários:

Unknown disse...

"O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como filósofo,penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minucias não encontram espaço em meu espírito, capacitado para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos."

Pobre Asterion a salivar...

Triste é estar aprisionado em uma casa, sem poder, ao menos, olhar pela janela e fruir o ar das poderosas palavras. Sim, pois as noites e os dias são longos e os séculos são séculos e mais séculos além.

Mais uma vez, sorte podermos nos interessar pelo que um homem pode transmitir a outros homens. Que graça estrelada essa.
Que brilho o da tua estrela em tão bem saber fazê-lo.

Que continuemos mais e mais a respirar da tua escrita estrelada.

Unknown disse...

“Alícia era uma ninfa antes de ser um redemoinho na cabeça de Verter, e não aspirava a mais nada senão sair para a luz do dia. Suas raízes não mais existiam e ela percebia pouco do que se passava ao redor. Quisera assim transformar-se, de certa feita, tornando-se vítima de seus próprios intentos.”

Às vezeeees me peerguntooooo se são os paráááágrafoooss perfeitooooosss que faaazem de vocêêê o meu escritoooor preferiiiiidoooooo, ou se sãããão os sentimeeeentooos a céu abeeeeerto e as idéiaaaaaas MA-RA-VI-LHO-SAAAAAAAS:

“De nós não sairão criaturas mais lúcidas ou mais nobres que nossos melhores momentos, informava aos transeuntes, externos e internos.”

Ou tudo issooooooo juntoooooo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Hihihi............
***SuspiroSuspirosSuspiros***

Unknown disse...

E eu que pensava que todos os gênios já estivessem mortos... Que fizessem parte de uma história remota! Bruto engano o meu!! :)
Beijo

Linda

Anônimo disse...

virar sempre à esquerda numa casa feita para se perder...

é girar

em círculos...

rodo (ex)piar!

Jorgeana Braga

Anônimo disse...

*Sou o que escrevo e escrevo para ser o que sou.*
E como escreve!!!!!!


Liliam K