quinta-feira, maio 15, 2008

O inferno céu da invenção

Lehgau-Z Qarvalho

Eu sou os outros, pensa enquanto espera pelo café e as torradas americanas. Talvez o maldito Schopenhauer tenha razão. Uma estranha música no ar. O que um homem faz é como se todos os homens o fizessem. Alguém se aproxima. Por isso não é injusto que uma desobediência em um jardim contamine a todos. Ela é ruiva. Por isso não é injusto que a crucificação de um único judeu baste para salvar todo o gênero humano. O perfume é suave. Talvez Schopenhauer tenha razão. A boca esculpida em Photoshop. Eu sou os outros. Pernas, seios, testa; tudo em larga vantagem. Qualquer homem é todos os homens. O mais tragipoético dos sorrisos. Shakespeare é de algum modo essa mulher.

Um arquivo alfa-beta-numérico-imagético recolhe as informações de variável veracidade. O café demora. Balança a cabeça. Esfrega os olhos. Ela de algum modo é essa mulher. De algum modo deve ser. De algum modo tem de ser. De algum modo tem de chegar; deve aparecer.

Em uma quinta-feira, por volta das 19 horas, em 1824, nos confins da Escandinávia, o mundo já era, por completo, breu. Uma das meio donzelas aproximar-se-ia do senhor de espessa barba, debruçar-se-ia sobre a mesa da taberna, acenderia a vela enfiada em um gargalo de garrafa e, sorrindo, beijaria sua fronte.

A felicidade, os estados musicais, as mitologias, os tempos em trabalho de parto, certos isso, certos aquilo, crepúsculos em desalinho, pequenos amanheceres, imanências, iminências, desajustes, tipificações em azul cobalto, rezas, orações, agradecimentos; a proximidade de uma revelação que não se produz. Todos os fatos são estéticos. O olho é de um verde quase mar em dia de amena tempestade.

Os primeiros relâmpagos surgem dentro do café caverna. Barulho de chuva no tempo seco. Lembra-se do tal romance que começa no terraço de uma torre de onde se pode ler o firmamento, para terminar em um subterrâneo encantado onde se pode ser o céu. Sente a possibilidade de fusão de todos os matizes esquizofrênicos e recua de imediato. Crê que de dentro de si, a qualquer momento, podem sair todas as metáforas revestidas de suas carantonhas perpendiculares. E nenhuma. “Posso me sentar?”, se permite Ela.

O homem gargalhar-se-ia, pegaria sua donzela por força de vontade pela cintura, daria dois tapas em suas nádegas e a levaria para cima. Os rostos corados. O vinho a regar-lhes os instintos. Os uivos em silêncios perfeitos.

Dos pressentimentos, sempre pôde chegar muito perto de uma certeza: justamente por saber-lhe afeito ao mal, Deus talvez lhe encomendasse uma missão. Até então, seus dias haviam sido de uma simulação inofensiva. Fingia em nada crer porque admitir o sobrenatural seria como negar as maravilhas do cotidiano.

Mas e se Sartre estivesse certo?! Se os outros o inferno fossem?! Como conseqüência, admitindo Schopenhauer, sim, Eu o inferno seria. Assim, acabar com ele, só a Mim competiria. E começar com rimas mal não faria. “Também quero um destes”, em voz de incontida feminilidade ao servirem à mesa a xícara fumegante.

Das inúmeras bênçãos que a literatura pode ministrar, a mais sublime haverá sempre de ser a invenção. Roça-lhe a perna; Ela; por debaixo da mesa.

Das inúmeras bênçãos que a criação pôde ministrar, a mais sublime haverá sempre de ser a mulher. Sente, de ponta a ponta, um arrepio a percorrer-lhe a espinha dorsal.

Coisas acontecem por debaixo dos panos.

O homem e sua barba, então carmim, sairiam estupefatos, ofegantes e vaidosos do catre para a rua.

O hálito é doce.

Ela, ainda na cama deitada, sem nada e lhe cobrir a alvura salpicada de bronze, rir-se-ia. Jamais donzela teria de fato sido; e jamais donzela voltaria a ser.

“Somos feitos da matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono – A tempestade (1611 – 1612). Ato IV – Cena I: Próspero”, a voz macia, mexendo e remexendo, Ela, além dos lábios, em seus avassaladores fios de cabelo.

Anota um número de telefone em um guardanapo de papel, deposita-o sobre a mesa, ergue-se e sai.

Sempre chegara às coisas depois de encontrá-las nos livros.
Talvez, lendo, Ela o encontre; ao invés dele a procurar.

Como haveria de ser Ela em outros ambientes? Pensa. Ao vento; ao luar; ao chuveiro. Talvez Schopenhauer tenha razão. Talvez Sartre. Talvez ambos. Talvez Jorge.

A criação nada mais é do que uma mistura daquilo que lemos com o que esquecemos. E quando esquecemos, não mais sabemos. Exceto quando vivemos; ainda que apenas enquanto lemos.

Ela talvez seja os outros; talvez o melhor dos infernos. Ela talvez seja o céu; talvez nem Ela, nenhum eu. Ela talvez seja ele, em seus absurdos desejos de possuí-la. Ela talvez seja rica; a frase perfeita. Ela talvez venha e diga; qualquer coisa, frase feita. Ela esposa de um deus, louco, tarado.

Encontrando-se, andariam lado a lado. Dadas as mãos – Ela linda, perfeita, poesia, segredo de Estado.

Final de expediente, tudo vai sendo fechado.



Um escritor distraído pela vaidade talvez pensasse tê-la de si; para si; só, em si; tê-la inventado.

Um comentário:

Unknown disse...

E repito e reafirmo aqui:
O homem dos parágrafos perfeitos...

“Eu sou os outros, pensa enquanto espera pelo café e as torradas americanas. Talvez o maldito Schopenhauer tenha razão. Uma estranha música no ar. O que um homem faz é como se todos os homens o fizessem. Alguém se aproxima. Por isso não é injusto que uma desobediência em um jardim contamine a todos. Ela é ruiva. Por isso não é injusto que a crucificação de um único judeu baste para salvar todo o gênero humano. O perfume é suave. Talvez Schopenhauer tenha razão. A boca esculpida em Photoshop. Eu sou os outros. Pernas, seios, testa; tudo em larga vantagem. Qualquer homem é todos os homens. O mais tragipoético dos sorrisos. Shakespeare é de algum modo essa mulher.”

Cada parágrafo, para não dizer cada frase, cada palavra (cada sílaba até, KKKK) é uma jóia rara. Um oásis em meio aos cinzas do dia-a-dia.


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