quinta-feira, junho 14, 2012

Questão de Ângulo

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Foto: Jéssica Rosa


Pai, pai, pai, olha só ali: um “véio” andando de skate!

O pai puxa com força a mão da filha, de seus quatro ou cinco anos de idade, a fim de que ela entenda que é para ficar quieta. A menina continua estupefata olhando para o ser, cerca de quatro décadas mais velho do que ela, se afastando sobre rodas de uretano.



Começo a rir sozinho enquanto deslizo para longe e, em uma tentativa quase inconsciente de acompanhar o “manual do senso comum para reações relativas a esse tipo de comportamento”, penso em qual deveria ter sido a minha reação no momento exato. Eu poderia ter ficado muito bravo com os pais da menina, e passar o dia, talvez a semana e quem sabe até o mês inteiro a reclamar da atitude de pessoas que, agindo e pensando de forma conservadora, passam todo tipo de preconceito de geração em geração fazendo com que esse mal nunca se termine.

Eu poderia ter me envergonhado ao ponto de me perguntar se realmente não estou muito velho para andar de skate e encontrar uma resposta afirmativa dentro de mim. O que me faria guardar o skate em casa e jamais mencionar o ocorrido a ninguém, deixando de me permitir desfrutar do imenso prazer que tenho em praticar o esporte.

Eu poderia ainda ficar argumentando por aí que apenas ando de skate para acompanhar o meu filho pré-adolescente. O que contribuiria para melhorar a minha imagem em duplo sentido: não ficaria parecendo, aos olhos dos demais, um maluco entrando na crise de meia idade, e ainda faria com que todos pensassem que eu sou um verdadeiro exemplar de pai presente. Uma espécie, nos dias de hoje, de superpai.

Ou poderia argumentar que skate é apenas um esporte como outro qualquer e que não há uma idade específica para praticá-lo de forma amadora; que ninguém se espantaria com uma pessoa de quarenta e quatro anos ou mais, muito mais, que estivesse jogando futebol, vôlei, tênis ou andando de bicicleta.

Sim, eu poderia fazer tudo isso ao me levar a sério demais; e solapar os meus instantes de felicidade logo no início de um domingo ensolarado e de temperatura amena em pleno inverno, acabando de vez com mais uma bela oportunidade de sentir prazer e engrandecer o meu espírito com boas energias. Que é exatamente o que sinto ao embalar, subir e deslizar no asfalto sobre a pequena tábua coberta com uma lixa, montada sobre um sistema simples de eixos em metal e amortecedores de borracha, presos a quatro pequenas rodas feitas de um material chamado uretano. Felicidade simples, de baixo custo e sem efeitos colaterais.

Mas o melhor mesmo é que, através do ocorrido, pude perceber tudo isso que escrevo aqui. Só tenho a agradecer à menina por ter me proporcionado ambas as oportunidades: a de ter me levado a momentos de reflexão para aprimorar o autoconhecimento; e a de ter me possibilitado mostrar a ela própria, já desde cedo, que outras possibilidades existem além do rigidamente estabelecido pelos padrões sociais vigentes.



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2 comentários:

elia disse...

Tuas percepções vem embrulhadas em papel tipo seda; dá gosto de ir abrindo e descobrindo o que botaste ali dentro.

Uma perspicaz reflexão, caro mestre.
Concordo, pra não ser tolo, principalmente com as partes que não disseste.
Tal abraço!

Alexandre (Z HQ) Carvalho disse...

Mui grato pelo belo comentário, meu caro!

E que esse papel de seda a que te referes seja do tipo assinado pelo senhor Baricco!! 8)*




Baita abraço.