quinta-feira, março 13, 2008

O homem borboleta azul

Lehgau-Z Qarvalho


Ninguém o viu desembarcar na noite unânime. Ninguém viu seu corpo nu emergir do lodo sagrado. Ninguém viu. Mas dias depois ninguém, nem mesmo o profícuo e astuto leitor de Borges, ignorava que o taciturno homem vinha do Sul e que sua pátria só existia para além da imaginação, onde o idioma fluxo d’alma não fora contaminado pela pequenez dos lenhadores de emoção e a lepra dos sentidos era pouco freqüente.

E se alguma verdade ainda é possível, é a de que o homem borboleta azul beijou o lodo e fez-se deslocar para fora do barranco muito mais rápido do que sequer ele podia imaginar. Mesmo sem, talvez, notar o capim-navalha que lhe dilacerava a carne e transformava, pouco a pouco, sua pele cianótica em vermelho vivo. Principiava doer, mas logo vertia a noite escura em luminoso dia. Mesmo ainda sendo noite.

Conforme projetava os movimentos, o sangue jorrava com mais fúria e potência e logo virava cicatriz. Sim, é certo: ficaria marcado. Mas a estética tribal vigente não absorve qualquer incômodo?! Tudo não é uma única questão lógica de ou zero, ou um?! De ou nada, ou algo?! Universo do paradoxo, não é, justo assim, que opera o sistema que embala o caos?! E nem era com isso que ele estava preocupado. Era com adormecer no caminho, e voltar a sonhar. Retroceder ao sonho maldito. Precisava da vigília como de carinho para sustentar-se em cima das próprias dúvidas.

Embora carecesse de um novo sonho, orava mudo pela lucidez. Ao menos por um tempo. Até que as chagas abertas pouco significassem além da própria energia despendida. Isso aconteceria, por certo (não sendo o certo incerto!). O propósito que o guiara não era impossível, ainda que sobrenatural. Como de costume, para reverter a lógica, no início seus sonhos eram de natureza dialética; depois foram ficando caóticos. Já, há algum tempo, perguntava-se se não havia sido levado à loucura. Mas era bem aí que se dava conta de que não. Afinal, loucos não sabem que são. Loucos então (a rima a perseguir-lhe implacável, maldita!).

Sonhava consigo mesmo debatendo-se no centro do próprio estômago. Milhares de borboletas azuis a circularem incômodas à sua volta. Dentro do órgão. Ele no centro. Bem no centro. Elas em volta. Ele odiento. Elas em convulsiva revolta. Sonhava. Ele. Elas. Azuis.

E apesar de atormentado, não quisera e nem queria despertar. Negava-se até. Não obstante os avisos; a própria consciência a emiti-los, também. E o mundo, lá fora. Ficava. Queria saber um porquê. Era mais forte que tudo. Precisava descobrir a razão. A de serem todas azuis, as borboletas (seria pelo fato de terem vindo dentro de garrafas, ainda em forma de crisálidas, feito embriões do sufoco, pelo mar – afetadas pelas cores salgadas das águas?!). Resistia desfazer-se desse projeto mágico que havia esgotado completamente o espaço da sua alma. Se alguém tivesse perguntado o seu próprio nome ou qualquer particular de sua vida anterior, não saberia alcançar resposta, tão absorto estava em seus planos de descoberta. De vida incerta.

Descobriu mesmo foi que o empenho em modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que os projetos, possíveis asas azuis e os sonhos, são feitos, é o mais árduo que uma pessoa pode empreender. Chegou a temer não ser ele mesmo, e sim a projeção do sonho de uma outra pessoa. E que isso poderia fazer com que ele entendesse melhor o que se passava, visto que tal simulacro poderia causar compreensível medo – pânico até –, em outrem. Todavia, evitava os julgamentos (e não é o que se faz quando se quer muito alguma coisa?!).

Mas alguns sinais se prenunciavam. Primeiro, durante uma eterna viagem aos cafundós, a eurasiática descoberta entre a Trácia e a Anatólia, consumida com dificuldades extremas. Lágrimas, enfim. Depois, ao final da jornada, o estranho desinteresse. Mais tarde, e por último, rumo ao Sul, em céu da cor da gengiva dos leopardos, a traição anunciada poucos dias antes. Rezara para que fosse blefe. Com todas as forças, rezara. Mas não era.

Então, agarrado ao metal da noite, apoiado sobre as costas de Borges para não afundar para sempre no lodo, com alívio, com humilhação, com terror, entendendo do que um simulacro é capaz, e como fênix que é, ressurgiu, levando o leitor por uma longa sentença, cheia de vírgulas e pulsos, cansativa e complexa qual foi sua jornada, de volta ao início do texto, para lembrar-lhe que ninguém o viu desembarcar na noite unânime, ninguém viu seu corpo nu emergir do lodo sagrado, ninguém viu. Mas ele vinha do Sul, do mesmo Sul; o homem borboleta azul.

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