Lehgau-Z Qarvalho
Cheguei logo de manhãzinha para ver o que estava ocorrendo. Não fazia a menor idéia do que me esperava. Havia recebido a mensagem pelo celular meia hora antes de sair às pressas de casa. Durante o trajeto até o bairro Assunção, percebia flashes da noite que se encerrava. Flashbacks intensos e soturnos.
Eu não lembrava de tudo. As imagens iam e vinham emboladas como em um pesadelo quase real. Daqueles em que a gente acorda todo suado e fica imensamente feliz por constatar que está deitado na própria cama, no aconchego do lar. Eu precisava de mais uma dose.
Parei o carro na entrada da mansão. Sim era uma mansão extraordinária. Até os jardins recendiam a finesse. Antes que eu tocasse o dedo na buzina os imensos portões de aço se abriram. Andei um bom bocado para chegar até a gigantesca porta de madeira maciça. Desembarquei do carro e tonteei. Com as mãos apoiadas no capô sacudi a cabeça para os lados até que as imagens se desfizessem. Os sentimentos misturavam-se ao intenso frio da manhã cinzenta.
As portas se abriram e uma senhora de avental e touca brancos convidou-me ansiosa para entrar. O senhor está bem? Perguntou-me aflita. Fiz que sim com a cabeça. Tem certeza? Continuou. Onde é que está? Soltei com voz rouca de quem dormiu pouco e mal. Lá em cima, reservou-se. Subi a escadaria que devia conter uns trezentos degraus. Ao menos foi essa a impressão que tive ao chegar no topo. Porta do final do corredor, à esquerda, indicou com o pequeno e enrugado dedo.
Dei uns cinco mil passos até chegar ao fundo. Olhei para trás para agradecer, mas a velha já havia desaparecido. Respirei fundo e vi uma mulher nua vindo em minha direção. Corria muito e chorava desesperada. Fiquei congelado dentro dos sapatos imóveis. Ela passou por mim e sumiu. Estaquei aparvalhado bem ali no meio do corredor. Vinte mil anos depois consegui mover um dedo, dois, três e, em seguida, a mão inteira; os braços, cabeça e finalmente as pernas. Cheguei perto da porta. Toquei na maçaneta e a movi para entrar.
Ensaiei o primeiro passo e logo recuei. O quarto parecia não ter chão. Estava envolto em brumas. Olhei para trás e vi a mulher nua outra vez. Correndo e chorando. Passou através de mim e entrou no quarto desvanecendo-se em meio às brumas. Tomei novo fôlego e me atirei atrás. Dei uns dez passos quarto adentro e vi. Ela estava lá. Com o filho morto nos braços. Movia-se devagar para traz e para frente em movimentos repetitivos. Os dedos da mão muito alva a massagearem os cabelos do defunto.
Eu não tinha idéia de como eu podia saber que ele estava morto. Mas eu sabia. Nunca tivera tanta certeza em toda a minha vida. De repente, mais um daqueles malditos flashbacks: uma pistola disparando. Em seguida, uma forte dor de cabeça. Eu conhecia aquele rosto. O do morto.
E aos poucos fui dando-me conta de que a conhecia também. A mulher. Era minha mãe.
sábado, janeiro 20, 2007
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2 comentários:
Aleluia!
Esperei um texto novo, como quem fica olhando para uma parede branca que aos poucos vai se preenchendo.
Vou reler o texto ainda outro dia, e mais outro e depois no outro.
Abç,
Ed.
gostei do texto. muito bom.
marcelo damico
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