segunda-feira, fevereiro 04, 2008

Ignávia pineal

Lehgau-Z Qarvalho


Sim, por vezes é muito mais difícil desfazermo-nos de um sentimento do que obtê-lo. Sendo ele testemunha de um momento de nossas vidas ao qual não regressaremos jamais. Ninguém quer extraviar um sentimento bom. É preferível perder um carro, uma jóia, um gordo maço de notas de cem ou, até, um livro.

E não querer mais um sentimento, negligenciá-lo, jogá-lo fora, é morrer um pouco. Quando penso nisso tenho sono. Durante ele, o sono, tenho a discreta sensação de não viver um pedaço de mim. De não sentir mais o que não quero; o que me persegue. A felicidade se mede ao descerrar das pálpebras pela manhã. E ao despertar, posso dar seqüência, por alguns instantes ainda, ao que me delicia; ou a falta do que me deliciava.

Mas nenhum sono é eterno; nem mesmo o sono eterno. Nem mesmo os ínfimos instantes após o ato de dormir. E os sentimentos abandonados, logo após o desjejum, permanecem ao redor como um imenso cérebro aberto, sob miseráveis desculpas e falsas tentativas filosóficas.

Sim, abandonar sentimentos é como sair de uma livraria lendo um poema de Emily Dickinson e ser atropelado por um caminhão na primeira esquina. É como construir uma casa de papel e dar-se conta disso só após a primeira chuva. É como ser obrigado a ir a uma festa e lá ser proibido de se divertir.

Temo que não consiga dizer-te adeus; embora já o esteja fazendo agora.

Assim sendo, anuncio-me: boa-noite meu amor.

Um comentário:

jorgeana braga disse...

intenso...a cena do poema e do atropelamento...é viva. e suas circunstâncias.