sábado, junho 24, 2006

Nó górdio
Lehgau-Z Qarvalho


O cacto em cima da mesa permanece imóvel. O móvel embaixo do cacto também. O sofá e a berger sequer acusam algum tipo de discrepância. As cadeiras alinhadas em volta do tampo de vidro se abstêm de atividade qualquer. Uma foto de Tom Waits ampliada e transformada em quadro afixado na parede nada observa. A cera sobre o parquet não conflita nem colapsa. Um fio de luz enfiado através da veneziana entreaberta desdenha o breu contagioso. O celular chama incessante. O ar fede. A fechadura está trancada por fora.



Os dias atravessam as noites como punhais às vísceras alheias. O sol fatiga a terra como a falta de dinheiro às carteiras. Os amores esvaem-se como os grãos na ampulheta.



Os túmulos já não são suficientes para os tumores dos cotovelos. Que tipo de dor suplanta a vida? A ordem? A tolerância? Que espécie de suor gelado abate o sorriso? Que teor de luz pouco ilumina os caminhos da mente?



Os alicerces da volúpia esmagam o ouro das alianças. O condutor de oxigênio borbulha nas veias. O intestino pressiona o estômago. Os joelhos estremecem. Os dedos confundem-se. Os lábios retesam-se. O corpo todo tem febre. A sirene ao longe é esquecida. Não há vermelhos nem verdes. As pálpebras cerram-se. Os neurônios descansam. As salivas misturam-se.



O suor é intenso. Fundem-se sais e aminoácidos. Distingue-se pouco. Seios. Pêlos. Nucas. Calcanhares. Esfíncteres. As paredes se contraem. O teto sobe. A alma desce. O teto sobe. A alma desce. O Teto sobe. A alma agradece.



Um peito ardendo é como tiros para o alto. Os projéteis ascendem, mas não tardam a voltar. A sobrevivência depende do vento.



Não há antídotos possíveis. Não há retórica suficiente. Não há limbo nem aurora. Depois do ato consumado, o que resta é a mentira, o lamento e a deserção. Qualquer gesto é improvável. As mãos podem ser o único recurso.



Quantas sensações pode conter um segundo? Quantos dizeres possui um silêncio? Quantos améns são necessários a uma existência? Quantas tríades se pode seguir fazendo sem que a loucura domine a razão?



O cano é esquentado pelo chumbo rodopiante. Um chumaço de cabelos cola-se ao cacto em cima da mesa. A cera do parquet absorve o impacto. O sofá recebe petit-pois púrpuro. Novo estampido quebra a homogeneidade da madrugada. A berger é empurrada com violência para trás, sob o olhar atento de Tom Waits. A tríade se desfaz. Entre os dedos não reside mistura. Os neurônios descansam. Um sorriso suplanta a gotícula gelada de suor. A ampulheta é virada novamente. Na rua o vento avisa que ainda há vida. Já não existe mentira, lamento ou deserção. O teto some. A alma fenece.

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