Outdoor
Lehgau-Z Qarvalho
Pressão no gatilho. Suor em excesso.
Projétil dispara. Viaja. Encontra. Buraco na testa. Rachadura no crânio. Fluido carmim. Paredes salpicadas. Barulho surdo no soalho. Fumaça no cano. Arrepio na espinha. Pavor no semblante. Imagem no espelho. Loucura no ar. Chuva na rua.
Era ainda muito cedo em uma manhã de primavera. Daquelas com pássaros cantando, flores se abrindo, sorrisos vagabundos e tudo mais. Logo que saí de casa recebi um telefonema. Daqueles com bom dia, desculpe o horário, pigarros secos e todo o resto. Ao escutar a notícia as chaves do carro escorregaram por entre os dedos até espatifarem-se no chão. Enquanto ouvia os detalhes tentava encontrar as chaves nos bolsos da calça. Quando dei por mim tentava abrir a porta do carro à força. Disse até mais e desliguei o maldito celular. Rodei por dez minutos e, ao parar ao semáforo na Avenida Independência com a Ramiro Barcelos, dei de cara com um outdoor com uma foto, de corpo inteiro, da Ana Hickman – aquela do um metro e tanto só de pernas. Fiquei contemplando aquilo tudo e pensando na sorte de alguém que poderia estar, naquele exato momento, acordando ao seu lado. Dando-lhe um beijo de bom dia e partindo para cima de novo. Ouvi uma buzina enlouquecida atrás de mim. Meti uma primeira e pernas pra que te quero. Desci a Avenida Mostardeiro dando-me conta de que não identifiquei qual o produto anunciado no outdoor da Ana Hickman. Virei à esquerda na Avenida Goethe conjeturando sobre os riscos de uma empresa anunciar o seu produto ao lado de uma foto como aquela. A Ana Hickman de vestido muito curto, sapatos de saltos enormes e tudo, ao lado da assinatura do que quer que se tente vender. O cachê deve ser bastante alto. A modelo lucra e o produto nem aparece. Fica escondido por conta daquela escultura em carne e osso. Seria o produto o sapato? O vestido talvez? A publicidade é um engodo. Nunca entendi como isso pode funcionar. Relacionar uma personalidade a um produto. E daí?
Bem, eu não sou publicitário nem industrial ou lojista e nem terei jamais uma mulher daquelas acordando ao meu lado de manhã. Nem por uma sequer. Por isso parei de pensar no assunto e tratei de chegar logo ao meu destino.
Entrei na Avenida Anita Garibaldi, estacionei em local proibido, e desembarquei do carro com as chaves na mão. O prédio era suntuoso e o porteiro nervoso. Até que rimou, pensei. Quando entrei no apartamento de cobertura, situado acima do vigésimo terceiro andar, avistei uma bando de gente. Todos bem atarefados. Digitais, fotos, perguntas aos vizinhos, telefones celulares tocando ao mesmo tempo e todo o resto dos filmes da madrugada na televisão. Ninguém me perguntou nada e nem olhou para mim. Caminhei até o quarto e parei na porta. Senti as chaves do carro escorregando por entre os dedos novamente. Indo parar no chão. Enxerguei a Ana Rickman bem na minha frente. Vindo em minha direção. Ela sorria e levantava o vestido muito curto como se estivesse a se abanar de calor. Dei mais dois passos quarto adentro e passei a procurar as chaves do carro nos bolsos da calça. Lembrei do velório do meu avô quando eu não conseguia me concentrar para chorar. Eu queria, mas não havia jeito. Ficava olhando para a bunda, seios e pernas de todas as mulheres presentes na capela do cemitério. Eu tinha apenas nove anos. Ao final do velório tomei uma bronca por ter perdido as chaves do carro do meu pai.
O cheiro no quarto era bem ruim. Era meio doce e azedo ao mesmo tempo. Era um cheiro de enxofre com sorvete de baunilha. A Ana Rickman apareceu de novo. Seios tremendos. Estava sem sutiã. Pés graciosos dentro dos sapatos de saltos monumentais. Sempre gostei de pés femininos. Especialmente os grandes. Têm estilo. Luz própria. E a Ana Rickman lá. Olhos de lingerie. Um metro e tanto só de pernas.
A vítima era um senhor. Dos seus setenta, setenta e poucos. Estava nu ao lado da cama. O rosto, não dava para ver direito. Havia sido parcialmente destruído por um projétil. Lembrei que o meu pai me levou para tomar sorvete no dia em que o meu avô morreu. Ele não sabia como me dar a notícia. Senti pena dele depois. A tia Nina usava mini-saia no velório. A Ana Hickman piscou para mim. Fez com a cabeça para eu chegar mais perto.
Parece que foi passional. Escutei de relance um policial fardado falando ao telefone. Nada foi roubado, dizia ele. A minha prima Sarita era outra de mini-saia no velório. Tinha até cafezinho, eu me lembro. Mas onde meti minhas chaves? Revirei os bolsos e nada. O velho não tinha filhos. Parece que era solteiro. Disseram que morava com um sobrinho de dezenove anos. A Ana Rickman me mandou um beijo. Fez um biquinho de enlouquecer. De feios a iguais a ela. Ou melhor, quase iguais. Ninguém se compara. Por mais que queiram. Por mais que tentem.
O velho era estilista ou algo assim. Uma pena. Tanto dinheiro. De repente bateram no meu ombro e me entregaram umas chaves de carro. As do meu. Agradeci. O garoto, o sobrinho, não estava sendo encontrado em parte alguma. Eu precisava anotar alguma coisa. Tinha de trabalhar. Puxei caneta e papel do bolso da jaqueta e escrevi a palavra Vizzano. A única coisa que me vinha à mente no momento. Olhei mais uma vez para a cara esfacelada do velho e embarquei no elevador. Quando saí do prédio vi que o porteiro não estava mais lá. Havia sido substituído. Ou tinha abandonado o seu posto. Quanto a mim, fiz o mesmo. Voltei para casa e jamais retornei ao Instituto Médico Legal. Estudei tanto para passar no concurso. Fiz a prova mais de uma vez até. Logo no primeiro dia. Se eu soubesse.
Um mês depois eu estou em casa sem nada para fazer. Ligo a televisão. Fico zapiando. De repente passo por um canal e volto rápido. Era ela, a Ana Rickman, dando uma entrevista. Uma só imagem seguida de uma só palavra me vem à mente: Sapato e Vizzano.
terça-feira, janeiro 31, 2006
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